HUMANIDADES
| HISTÓRIA
Como a modernidade apartou homem e natureza na metrópole paulistana
Carlos Haag
Pesquisa FAPESP, Edição Impressa 170 - Abril 2010
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Um convívio incômodo entre a modernidade do bonde e a antiguidade do boi na capital |
incauto cidadão e, assim, teria ocorrido o primeiro caso de dengue no Brasil. Hoje,
mais de 300 anos depois, em pleno século XXI, um simples mosquito ainda
consegue render um país, sinal de que a modernidade brasileira não foi capaz,
como esperavam os crentes do progresso de fins do século XIX e início do século
XX, de “vencer” o “atraso” representado pelos “animais”. Mesmo numa metrópole
avançada como São Paulo. “Naquele período, os animais da cidade passaram por
um processo de ‘recolonização’, parte do processo de passagem de um padrão de
raízes coloniais para outro com elementos de modernidade, em que o homem
redefiniu suas atitudes e relações com os animais, colocando em oposição o
‘couro’, símbolo do animal, e o ‘aço’, o moderno”, analisa Nelson Aprobato Filho
no doutorado O couro e o aço: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da
Pauliceia, defendido no Departamento de História da USP, orientado por Nicolau
Sevcenko, com apoio da FAPESP.
“Meu objetivo foi entender os impactos da modernidade sobre os animais da
cidade e demonstrar que a modernidade paulista aconteceu em suas dimensões
(reais, imaginárias ou simbólicas) graças e a partir dos animais e das atitudes,
usos e sensibilidades que o homem passou a adotar sobre eles”, continua. Segundo
o pesquisador, com a revolução científico-tecnológica, os animais passaram a ter
uma importância inesperada, já que, no processo de emergência das grandes
metrópoles, eram para os homens a parte constitutiva de uma “cultura de
referências estáveis e contínuas” que, nota o pesquisador, foram dilapidadas com o progresso. “Foi, logo, sintomática a escolha física e simbólica de animais como
elementos singulares de experimentação, contraponto e confronto para a
justificação ou detração (real ou imaginária) da modernidade paulistana.”
Exemplos não faltam, desde o “Ou São Paulo acaba com a saúva, ou a saúva
acaba com São Paulo” até a associação, feita por Monteiro Lobato, entre o
quadro social nacional e o carro de boi, visto como símbolo do atraso, da
lentidão, da rusticidade “antiga” e perniciosa. Não sem razão, uma estatística
comparativa, feita em São Paulo, da quantidade de bovinos, equinos, asininos
e muares revela que, se em 1905 eles eram 21.606, em 1920 passam para 38.885
e em 1940 chegam a apenas 5.375. No espaço de duas décadas, mais de 35 mil
animais desapareceram da paisagem da cidade grande e, mais importante,
sumiram da consciência dos cidadãos.
Esse processo de “desapreço” inicia-se já em meados do século XIX. “Basta ver as caricaturas de Ângelo Agostini, em Cabrião ou no Diabo Coxo para perceber como,
na época, os animais, cada vez mais, aparecem associados ao atraso, à pasmaceira,
à imundice. Porém, na realidade sociocultural da época, as maleabilidades do couro
eram ainda mais resistentes do que as consistências do aço. Paulatinamente esse
quadro foi se invertendo”, explica o autor. Então, não era difícil ver 300 carros de
boi (que só irão desaparecer entre os anos 1910 e 1920) circulando entre São Paulo
e Santo Amaro. A cidade também era constantemente atravessada por tropas,
compostas por 40 a 80 animais. “Se ocorresse, por acaso, o encontro de quatro
tropas numa rua paulistana era possível observar-se o trânsito provocado por 320
muares e centenas de insetos e parasitas que acompanhavam as tropas. Delas aos
carros de boi, das carroças às montarias, das boiadas aos urubus, das aves aos
peixes etc., os animais viviam, invadiam ruas, largos e praças. Era impossível não
ter uma convivência intensa com eles”, conta. O contraponto dessas maneiras do
viver cotidiano, em que os animais eram, de forma até certo ponto equilibrada,
agentes e pacientes, manifestou-se nos projetos e mecanismos criados por
elementos ligados ao poder público, às entidades científicas e tecnológicas que
passaram a atuar em São Paulo a partir de fins do século XIX e início do XX.
“Pelo acompanhamento das várias leis e projetos que tinham como alvo os animais percebe-se como o poder público tratou a questão: quais os lugares, funções e
papéis que lhes caberiam na nova cidade; quais os animais ‘eleitos’ para
permanecer no meio urbano; quais confrontos foram estabelecidos entre eles e o
progresso.” O pesquisador lembra que, ao mesmo tempo, surgia a tendência de
considerar o engenheiro como o profissional mais capacitado para gerir os destinos
de uma cidade. “Eles passam a olhar com certa cobiça as administrações
municipais que subordinavam seus habitantes e animais aos mecanismos da
engenharia moderna. Entre o couro e o aço ia brotando uma nova e excludente mentalidade tecnológica. Na trilha das mulas, que para eles eram sinônimo de
ruralismo e passado colonial, os engenheiros paulistas tentavam alicerçar seus
ideais de civilização numa ‘cruzada’ pela modernidade”, observa. Até “vítimas”
inesperadas, como os cães, viram alvo de campanhas de repressão por meio de
leis regulatórias que incluíam gastos da prefeitura com “bolas de alimento com
veneno dentro”, dado aos caninos soltos na rua, bem como taxas e obrigatoriedade
do uso de coleiras (“os cães devem estar açaimados e coleira numerada que indique
ter pago o imposto municipal”, dizia a Lei nº 68 do Código de Posturas de 1886).
Havia discussões acaloradas sobre o que era ou não um “cão de raça” e, portanto,
sujeito a privilégios. “Para construir uma cidade moderna era preciso criar
mecanismos para corrigir os que denotassem tendência à ‘vagabundagem’, de
homens ou cães.”
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Visões do descompasso animal em São Paulo, na visão de Agostini
guerra contra a saúva mobilizou a cidade em todos os níveis, seja na destruição
física dos formigueiros, seja pela simbologia. Lobato foi um dos escritores paulistas
que mais utilizaram o inseto como símbolo do arcaísmo e ruralismo,
acompanhando-o, em suas reflexões, por décadas. Em suas teses cáusticas,
escritas em 1908, por exemplo, as formigas representavam a antítese do progresso,
a demonstração cabal do atraso em que estavam mergulhadas cidades e
populações pobres.” Vinte anos mais tarde, Mário de Andrade falaria delas, num
registro mais irônico, em Macunaíma. “Inda tanto nos sobra, por este grandioso
país, de doenças e insetos por cuidar. Estamos corroídos pelo morbo e pelos
miriápodes. Em breve seremos uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte.
Por isso e para lembrança dos paulistas, a única gente útil do país, propomos um
dístico: ‘Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são’.” O historiador
Nicolau Sevcenko, em seu artigo “O Brasil e as saúvas”, faz um curiosa síntese
do uso metafórico do “inseto que incomodava”, pelas várias elites dirigentes, em
diferentes épocas históricas, sempre que se tentava “eliminar saúvas”, fossem
quem elas fossem: a elite agrária do século XX e o Jeca Tatu; Vargas e a
campanha contra o malandro; os militares e a repressão.
Os animais, porém, podiam ser um hábito arraigado de difícil contenção. “Ao
observar as várias leis, por exemplo, vê-se a ineficácia das medidas
governamentais para tentar coibir o tráfico dos carros de boi pelo centro da
capital. Percebe-se, em especial após 1900, a insistência do poder público por
afastar esses elementos das ‘áreas nobres’ e a resistência dos carreiros em
abandonar uma prática de deslocamento que tinha tudo a ver com formas
populares de sobrevivência. Essas figuras e seus animais iam se tornando
visões indesejáveis e dissonantes para a nova metrópole.” Ao mesmo tempo,
o couro e o aço, em face da tecnologia incipiente, eram obrigados a conviver,
como no caso dos bondes puxados a tração animal. “Utilizados até então em
tropas de mulas ou carroças, houve um estranhamento tanto da população,
desacostumada desse gênero de condução, como dos animais, uma vez que o
peso dos bondes era bem maior do que o que estavam acostumados.” Ou, nas
palavras de uma testemunha ocular: “Os grupos pulavam e desciam dos
bondinhos e se postavam à frente dos pobre muares, que, sob o ardor dos chicotes,
faziam o impossível para arrastar os carros que se achavam com seu peso além
da conta”. Havia quem reclamasse do novo serviço por se ver, subitamente,
morando ao lado das cocheiras. “Não existirá meio de acabar com tão incômoda assembleia?”, reclamava às autoridades um morador do Rosário.
O progresso logo traria o sossego ao incomodado. A partir de 1901, o monopólio
dos transportes urbanos passa a ser controlado pela companhia canadense Light & Power, que iniciou a retirada dos bondes tracionados por animais das ruas
centrais de São Paulo. O último deles foi retirado em 1910. Do entusiasmo inicial
pelo novo transporte, a cidade agora se envergonhava de ter que andar com
bonde movido a muares. “Houve a Revolução de Santana, organizada por
moradores do bairro que, descontentes por pertencer a um dos únicos bairros da
cidade que ainda eram servidos por bondes puxados por animais, resolveram
usar a força para intimidar o poder público e a Light & Power. Soltaram
os burros e colocaram fogo nos bondes”, conta Aprobato. Ao mesmo tempo,
os bondes elétricos mexeram não apenas com o ego dos paulistas. “Para uma
população acostumada a deslocamentos que tinham como parâmetro a
velocidade desenvolvida por bois, mulas e cavalos, a adaptação integral ao
novo veículo foi pautada por receios e medos constantes.” O zoólogo Afonso
Schmidt descreveu como os “espíritos conservadores, habituados às doçuras
dos bondinhos, puxados por uma parelha de líricos muares, não viam com bons
olhos a sua substituição por amplos, limpos e rápidos veículos movimentados a
força elétrica. Manhosamente alegaram um sagrado horror aos desastres”. Foi
necessário que as empresas contratassem os “técnicos em acidentes”, pessoas que
se deixavam atropelar pelo bonde a uma velocidade de oito pontos para
demonstrar a eficácia dos limpa-trilhos.
Ritmos - “Os bondes elétricos, mais profundamente que os anteriores, de tração
animal, por suas singularidades tecnológicas e impacto perceptivo-sensorial, foram
um dos principais veículos da transformação comportamental urbana e
sociocultural ocorrida em São Paulo no início do século XX”, observa o
pesquisador. Eles, continua, “despertavam os moradores da cidade para novos
ritmos que, dali em diante, eram obrigados acompanhar”. Mas não era o bastante.
José Agudo, em Gente rica – Scenas da vida paulistana, revela os novos desejos
por meio do personagem do Dr. Zezinho, “apurado no vestir e frequentador de
cassinos e pensões que não têm hora de fechar”. Para ele, era um inferno chegar
em casa “depois das duas da madrugada e não dormir, porque principiou o
barulho de bondes e carroças”. Afinal, os automóveis estavam chegando e em
breve “qualquer pé-rapado há de ter o seu”. “Também deixam atrás de si um
fétido horrível de gasolina, mas é chic andar-se de automóvel. Oh! Um 40 HP
é soberbo. Depois, quem anda dentro dele não fica sujo de poeira nem sente o
mau cheiro da rabeira. Os que foram à pata que se arranjem, ora essa é muito
boa!”, filosofava o playboy paulistano, para quem a prefeitura deveria “calçar as
ruas de borracha”.
Dr. Zezinho tinha ainda outras filosofias. “Os bondes vieram tornar mais suave o
trabalho dos burros. Já se pode ser burro em São Paulo, pois até há bebedouros
para eles nas praças públicas. Ali mesmo no Largo São Francisco há um. Que
sábia providência. Quanto burro antes não sofria sede. Se os burros falassem, é
possível que um deles que por aqui viesse de passeio, parodiando a celebrina
Sarah Bernhardt, exclamasse: ‘São Paulo é o paraíso dos burros!’.” Couro e aço
iniciam um estranhamento cujas consequências finais ainda estamos sentindo.